João Silvério
Curator and writer.

‘Glimpse.  An Art of Microseconds’
Text of the exhibition An Art of Microseconds. 3+1 Arte Contemporânea (Lisbon, 2018).


Installation view of the exhibition An Art of Microseconds. 3+1 Arte Contemporânea (Lisbon, 2018). Image: João Ferro Martins.

O trabalho de Cristina Garrido (1986, Madrid, Espanha) assenta essencialmente numa investigação operativa sobre as condições de possibilidade do estatuto da obra de arte na relação com os dispositivos e protocolos sociais que se constituem como plataformas de visibilidade do trabalho dos artistas. A sua prática apresenta uma forte componente conceptual, e deste modo reflexiva, sem contudo se afastar de uma componente estética e plástica que agrega metodologias e meios muito diversos, tais como o vídeo, a escultura, a instalação e objectos múltiplos reproduzidos pela artista como ícones representativos do sistema da arte contemporânea. Neste aspecto, a linguagem (e a polissemia de sentido) estabelece uma correspondência entre o valor simbólico de uma designação, um signo visual, por exemplo de um museu ou de um centro de arte, com uma discursividade crítica e analítica sobre esse signo e a sua validação no universo da representação visual, e deste modo sobre o seu impacto social e económico.

Este não é um campo virgem na reflexão do trabalho da artista: em 2016, apresentou a série intitulada An Unholy Alliance que remete para os desequilíbrios, plasmados em revistas de arte contemporânea, entre o número de páginas dedicadas à publicidade e os textos críticos e formativos em termos de público. Como refere Daniel Garza-Usabiaga, no texto sobre a exposição1:

“An Unholy Alliance (2016) es un trabajo que contrasta el número de páginas dedicadas a publicidad con las que contienen textos especializados en seis revistas de arte de circulación internacional: ARTFORUM, Frieze, Modern Painters, MOUSSE, ArtReview y Art Monthly. Con este fin, Garrido ha utilizado las páginas para hacer volúmenes esféricos a la manera de papel maché. Expuestos sobre una mesa, estos objetos podrían parecer una colección de piedras. No obstante, muestran la desproporción que existe entre el cuantioso número de páginas de publicidad (de galerías comerciales, instituciones públicas, bienales, ferias y otros eventos periódicos) y el cada vez más reducido contenido crítico de las publicaciones impresas.”


Installation detail of the exhibition An Art of Microseconds. 3+1 Arte Contemporânea (Lisbon, 2018). Image: João Ferro Martins.

A presente exposição, intitulada An Art of Microseconds desenvolve-se nos dois espaços da galeria, que correspondem à dimensão crítica anteriormente elencada. Por um lado, funciona como um inquérito à nossa capacidade de compreender a análise sistémica que Garrido nos apresenta sobre as condições, e contradições, económicas e sociais que resultam da irreversibilidade das estratégias do mercado de arte, da sua difusão, e da integração de meios promocionais que rapidamente transformam a singularidade de um objecto artístico num objecto de consumo, descartável e de desgaste rápido. Esta transmutação ocorre sobre plataformas auto-portantes que se auto-regeneram numa sucessão infinita, em cada micro-segundo, convertendo a contemplação num vislumbre (glimpse) que o espectador absorve, no sentido mais próximo da alienação que Guy Debord cunhou. Por outro lado, a exposição resgata um legado conceptual e pictórico, patente na série inédita de pinturas/objectos intitulada Risk Management Paintings, e uma dimensão documental/ ficcional, no vídeo intitulado Boothworks.

As pinturas sobre as paredes, tal como as pedras executadas em papier maché da série An Unholy Alliance anteriormente referida, são, aparentemente, pinturas abstractas e geométricas, com uma composição simétrica e uma paleta equilibrada. Contudo, uma legenda, que faz parte integrante da obra, converte estas pinturas abstractas em gráficos analíticos da engenharia financeira necessária para que cada galeria cumpra o calendário das feiras de arte, independentemente das obras e artistas que mostra e dos custos associados a esta representação.

Numa mesma obra, confrontamo-nos com uma referência à experiência visual e estética que esta convoca e simultaneamente com os meios financeiros necessários para que esta obra possa ser vista, e consumida, em diferentes mercados. Na mesma linha de pensamento, o vídeo Boothworks descreve, sob um discurso ficcional, todo o percurso necessário à participação de uma galeria nas feiras de arte internacionais. A narrativa é construída essencialmente por imagens emblemáticas de todo o processo, desde a concepção, a maqueta do espaço expositivo da feira, conhecido como Booth, passando pela sua montagem, afluência de público, massificação dos espaços e acumulação das obras, questionando de forma irónica, mas crítica, esse espaço como um dispositivo expositivo auto-portante, itinerante, nómada e sujeito a testes de alta rentabilidade na proporção do investimento e das vendas realizadas, o que remete para a estatística presente nas Risk Management Paintings. Garrido interroga essa lógica capitalista e mercantil que normaliza as práticas artísticas, a relação do espectador com o espaço, mesmo a função curatorial, e deste modo a ausência de reflexão crítica e da noção de tempo que qualquer obra necessita para que possa ser observada, passando para a esfera do produto, como activo que rapidamente se substitui na parede sucedendo-lhe um outro, que em micro-segundos é diferido, como imagem tipificada, em diversas plataformas digitais. A construção desta obra é ainda estruturada pela montagem sonora, que nos confronta com uma série de statements, como se fossem depoimentos, de personalidades e agentes da arte contemporânea que reflectiram sobre estas questões a partir da década de 1960: Lucy Lippard, Miwon Kwon, Germano Celant, Renée Green, Seth Siegelaub, Joseph Kosuth ou Hélio Oiticia, entre outros. É paradoxal escutarmos a locução das suas palavras enquanto visualizamos a actualidade das imagens de um universo mutante, questionado há várias décadas, mas numa outra coerência temporal que a obra de Cristina Garrido recupera.


1. Daniel Garza Usabiaga, Un acuerdo tácito (2016).

cristinagarridowork@gmail.com